Esgrimista desde 2014, Marta Caride já conquistou inúmeros resultados de relevo, tanto a nível nacional como internacional, na arma de Florete. Afirmando ser fascinada pela necessidade de concentração, foco e tomada de decisão que a Esgrima exige, Caride, que é também estudante de Medicina, não tem dúvida que a surdez com que foi diagnosticada aos dois anos, nunca a impediu de lutar pelos seus objetivos e permitiu-lhe até desenvolver algumas vantagens. Essencial, considera, é sentir também o apoio da família, amigos e fazer parte de um grupo de trabalho diverso com um “amor comum pela Esgrima”

Como e quando começaste a fazer Esgrima?
Comecei a praticar Esgrima na sequência de uma iniciativa de desporto escolar, na Escola Almeida Garrett, em Gaia, de onde sou natural, no 7º ano, em 2014. Estive nesse primeiro ano com os professores Filipe Melo e Quitéria Barbosa, que davam aulas de Educação Física na mesma escola. No ano seguinte, federei-me e entrei para a secção de Esgrima do Sport Clube do Porto onde o Filipe Melo é treinador.

O que mais te apaixonou quando iniciaste a prática de Esgrima e o que é que te continua a fascinar?
O facto de ser uma modalidade absolutamente diferente do que já tinha experimentado, na dança e no ténis! Apesar de diferente, incorporei as aprendizagens que trazia dessas áreas, daí ter sentido alguma facilidade no processo de aprendizagem da modalidade. Fascina-me a necessidade da concentração, foco e de tomada de decisão rápida que a Esgrima exige!

Que argumentos apresentarias a uma criança ou jovem para o levar a experimentar Esgrima?
Para quem gosta de experiências novas e de desportos individuais, é a oportunidade de praticar uma modalidade surpreendente, com sensações muito à flor da pele! É, sem dúvida, um desporto que permite aprendermos a conhecermo-nos a nós próprios, já que temos de estar bastante confiantes do que sabemos e conseguimos fazer.

Que momentos recordas com maior carinho da tua ainda jovem carreira?
Pratico Esgrima há cerca de sete anos e, felizmente, já são muitos os momentos! O 13º lugar na prova do Circuito Internacional de Cadetes, em 2017 em Budapeste, foi incrível, porque senti que estava mesmo a conseguir realizar as ações que me propunha e a conseguir corrigir erros! Guardo também a Marathon CIP Challenge, uma prova maravilhosa que, pela sua dimensão, fascina qualquer um. Foi um grande momento, em 2018, após quatro anos a participar na prova, naquela que era a minha última vez, conseguir o 4º lugar, entre 172 atletas de todo o mundo. Estava muito bem no campeonato da Europa, em 2018 na Rússia, onde consegui um bom 12º lugar. Apesar de ter passado estes dois últimos anos de Júnior num vazio competitivo, por causa da pandemia, senti-me satisfeita com o 27º no Campeonato do Mundo, na Polónia, quando me estreei como atleta Júnior! No que diz respeito à emoção a nível nacional, foi absolutamente inesquecível o Campeonato Nacional de Seniores, em 2019, na qual consegui(mos) o título de Campeã Nacional Individual e por Equipas. Senti aí um grande orgulho por todo o trabalho que tinha desenvolvido e também pelo verdadeiro espírito de Sport Club do Porto!

Como tens vivido esta época marcada pela pandemia e mantido a prática regular de Esgrima?
Tem sido algo inconstante e isso é, obviamente, uma coisa que afeta qualquer atleta. Pessoalmente, guio-me muito por objetivos definidos e, talvez por isso, tenha sentido mais dificuldades em estar motivada. Quando as regras do confinamento o permitem, tentamos retornar o mais rapidamente ao trabalho. Quando há momentos mais apertados nas medidas, tento trabalhar mais a condição física geral, em casa (porque nunca haverá nada como um bom trabalho de pernas orientado na sala!). O facto de ter aulas permite-me conseguir definir horários para conciliar tudo e tentar ter dias produtivos. A prática de Esgrima foi retomada mais seriamente na sequência da convocatória para integrar a seleção nacional no Campeonato do Mundo juniores, no Cairo, algo que sem dúvida me deixou muito animada!

Podes dar exemplos das tuas rotinas ou de alguns exercícios que passaste a fazer em casa ou noutro contexto devido à situação gerada pela pandemia?
Consegui manter a rotina de treino físico geral, pois tenho ginásio em casa. Fazia um treino ao final do dia, de cerca 1h30, envolvendo corrida, musculação e um bocado de deslocamentos mais específicos da Esgrima. Comecei a tentar prestar mais atenção aos alongamentos, porque é, sem dúvida, algo que ajuda na recuperação ativa mas que, tenho de confessar, é uma área em que desligo um bocado.

O que tem sido mais desafiante nesta fase, para além da ausência de competições e contacto regular com o grupo de treino?
A nível pessoal, o mais desafiante é não estar presencialmente com as pessoas, sem restrições a nível de distanciamento e uso de máscara. Como adolescente, sinto que deveria ser uma altura muito marcada pela liberdade e que, infelizmente, tem sido precisamente o contrário. Sinto isto, pois encaro o confinamento de uma forma muito responsável, já que, sendo estudante de Medicina, não me faria sentido de outra maneira que não a de dar o exemplo.

Consegues nomear três “ingredientes” que, do teu ponto de vista, são essenciais a qualquer esgrimista durante a prática da modalidade?
Desejo de melhoria constante. Acreditar no processo. Gosto pela complexidade da Esgrima.

Para quem não sabe, foste diagnosticada com surdez aos dois anos de idade. Podes partilhar como é que abraçaste essa adversidade no teu dia a dia, de modo a que não constitua um obstáculo para alcançares os teus sonhos?
Costumo explicar que só me conheço nesta realidade, ou seja, uma Marta que acorda, põe os seus aparelhos e realiza a vida normalmente. Recebi uma educação baseada no querer-acreditar-trabalhar-sonhar-concretizar e, a verdade é que, ser surda nunca me impediu de sonhar! Vivo feliz com a minha limitação, não só porque sempre estive rodeada de família e amigos que me ajudaram com tudo o que é necessário, mas também porque, intrinsecamente, sinto que contribuiu para que conseguisse ter um foco e atenção muito peculiares.

Como é que enfrentar este obstáculo te ajuda na Esgrima? 
Conheço e desenvolvo algumas vantagens decorrentes da surdez: a questão da visão e do foco, nomeadamente. A ligação com o mestre Filipe Melo é um dos segredos da minha história! Há muita empatia, respeito, trabalho…diria que criámos uma linguagem própria! E o mesmo acontece com o treinador José Guimarães (o Guimar), é um privilégio poder ser orientada por um esgrimista olímpico! Creio que o ambiente de envolvência de um atleta faz toda a diferença para conseguir acreditar no trabalho que se desenvolve em conjunto e nos objetivos a realizar e nuns quantos já realizados!

Sentes que o contrário também acontece? Ou seja, a forma como, pela sua natureza, a Esgrima te moldou, também te ajuda no teu dia-a-dia a enfrentar esta dificuldade?
Absolutamente! A Esgrima faz parte da minha vida desde os meus 13 anos. Têm sido anos de superação! Ganhei cedo autonomia e uma maior disciplina: seja para ir treinar, para me organizar e conciliar as provas internacionais com os estudos, por exemplo. O facto de ter pouco tempo disponível faz com que todos os momentos sejam aproveitados ao máximo. Essa virtude de “conhecer” o valor do tempo depois também acaba por ser valiosa para a vida, com a família e amigos.

Na tua opinião, o teu exemplo pode contribuir para que outras pessoas possam também concretizar os seus sonhos e objetivos, independentemente da sua condição ou dificuldades?
Sei que a minha história inspira as pessoas – é incrível o carinho e o apoio que recebo! Fico muito feliz por isso, porque é um pensamento que realmente me invade, o de não haver limitações para os objetivos!

O que te faz continuar a tentar e a treinar quando regressas a casa após um resultado que não era o que desejavas?
É essencial saber que trabalhei e que fiz o meu melhor. Penso nesses momentos como uma aprendizagem porque procuro sempre evoluir, sendo plenamente consciente de que vamos tendo altos e baixos ao longo da carreira, e que todos eles servem para a experiência, algo fulcral na Esgrima.

Consideras que apesar de a Esgrima ser uma modalidade individual, ter um grupo de trabalho coeso e diverso é fundamental? 
É essencial e eu tenho isso no Sport Clube do Porto! Somos um grupo com muitas mentalidades distintas, mas com um amor comum pela Esgrima. Há uma ligação forte e garra que circula pelo Club e que nos vai puxando uns aos outros para cima em momentos menos bons. Tenho lá amizades para a vida. Já são muitas as horas de treino, estágios, viagens para competições, aviões, hotéis…

Podes partilhar como tem sido conciliar a vida desportiva com os estudos ao longo de vários anos e, mais recentemente, com teu percurso académico?
Comecei a fazer circuitos internacionais a partir do 8º ano. Nessa altura percebi que tinha de planear o melhor possível o meu calendário escolar para conciliar os meus objetivos escolares com as provas fora do país, que acabavam por não só ocupar 2 a 3 dias, como também eram bastantes exigentes a nível de cansaço: treinos durante a semana, apanhar aviões durante a madrugada, jogar, retornar, ter aulas e repetir. Muitas vezes, levar livros no saco de armas e tentar ler pequenos pormenores! Agora, estou a estudar Medicina, no ICBAS, e tem sido uma experiência muito boa. No entanto, este ano de Caloira acaba por não ser “tradicional” dado que não temos as competições nacionais e internacionais a funcionar em pleno!

Quais os teus próximos objectivos a médio e a longo prazo? Vês-te a ter uma carreira longa ou é algo sobre o qual ainda não pensas?
Não penso no momento do fim da prática da Esgrima. Vivo o presente, sabendo que quero continuar a praticar e a estar ligada à modalidade enquanto isso me fizer feliz e realizada.

Podes partilhar com quem nos lê quais os teus principais hobbies ou o que gostas mais de fazer nos tempos livres?
Como a minha vida nos últimos anos teve sempre uma grande influência, inevitavelmente, nas ocasiões em que conseguia estar presente, sinto que desenvolvi um gosto gigante pela companhia e presença de amigos e familiares. Momentos de convívio, da forma que forem, são verdadeiras alturas em que posso, nem que seja por horas, desligar-me das responsabilidades e estar livre. Gosto também de estar rodeada de cães e de ouvir música!