Handicaps na performance do esgrimista

A estrutura determina a função – Uma perspectiva evolutiva

 

Texto de: Hélder Borges

Antes de mais, foi com enorme prazer que aceitei o convite da Federação Portuguesa de Esgrima (FPE) para dinamizar uma série de rubricas direcionadas aos atletas, treinadores e apaixonados pela modalidade. 

Irei mostrar através das mesmas, determinadas reflexões baseadas na experiência de alguém que, apesar de, no presente momento estar nos bastidores (como osteopata e preparador físico), encontra-se há mais de duas décadas ligado à modalidade, tendo inclusivamente alcançado um honroso sexto lugar no Campeonato do Mundo de Juniores em Trapani (Itália) no ano de 2003 e vivenciado várias lesões decorrentes da prática da modalidade. Além disso, neste momento está dedicado à simbiose entre as áreas da Osteopatia e do Treino Personalizado através da marca OsteoPerformance.

Nesta rubrica irei debruçar-me especificamente sobre os potenciais efeitos colaterais decorrentes das posturas e movimentos assimétricos da Esgrima sobre um corpo humano naturalmente assimétrico e vulnerável.

 

Resultado evolutivo

O ser humano é fruto de um processo evolutivo com uma história de milhões de anos. Charles Darwin, naturalista britânico, foi um dos primeiros cientistas a propor a relação de parentesco da espécie humana com os grandes macacos – os antropoides, tendo em 1859 publicado o livro “A origem das espécies”. 

Para contextualizar e auxiliar à compreensão da natural tendência para a ocorrência de determinadas lesões em qualquer contexto desportivo, é impreterível compreender certos handicaps que o ser humano carrega desde os primórdios da espécie. 

Tendo em conta o grau de parentesco do homem com os macacos, recentemente um estudo feito na Universidade do Arizona, nos Estados Unidos dedicou-se a investigar as grandes diferenças na performance e biomecânica entre os dois, tendo Matthew C. O´Neill (e seus colegas) analisado diversos estudos de desempenho destes animais. 

Segundo a pesquisa, o chimpanzé apesar de ser mais baixo e mais leve que os humanos, pode alcançar até o dobro da força, quando comparado com o homem. Em termos de fibras musculares o chimpanzé têm o dobro da proporção das fibras rápidas, permitindo-lhes garantir muito mais força e velocidade. Hipoteticamente se colocássemos em pista de velocidade o atual campeão olímpico (em plena forma física) a competir com um chimpanzé jovem adulto (saudável) na distância dos 100 metros, e este compreendesse as regras do “jogo”, a vitoria seria atribuída garantidamente ao chimpanzé. Por outro lado, se o desafio fosse no contexto de uma corrida de longa distância, como é o exemplo da maratona, o cenário já teria outro desfecho. 

A estrutura (anatomia) determina a função (fisiologia). Derivado das suas estruturas anatómicas, poucos são os mamíferos que possuem tanta resistência para longas distâncias como o homem. O facto de o nariz do homem estar projetado para fora do crânio, diferente do nariz chato dos demais primatas, permite-lhe aumentar o contato entre o ar e as membranas mucosas, humidificando-o e transportando-o para os pulmões, conferindo ao homem uma melhor capacidade de caminhar em lugares mais secos sem correr o risco de desidratação. 

 

Como seria num assalto de Esgrima? 

O mais certo seria o chimpanzé perder o assalto. Não pela falta de capacidade física, mas pela falta de estratégia e raciocínio. Acredito que seria sancionado vezes sem conta até receber o cartão preto, por não ter capacidade de compreender ou respeitar as regras, podendo até tornar-se violento com uma espada, sabre ou florete na mão.

Apesar do facto de o ser humano ter emancipado as mãos da locomoção, libertando-as para o fabrico e manuseamento de ferramentas (o que mais tarde permitiu o manuseamento de espadas), ter contribuído em grande escala para o desenvolvimento do crânio, da linguagem e da inteligência (o que o distingue dos outros animais), a redução do número de apoios do solo obrigou a um maior esforço do organismo para garantir que a sua estrutura se mantenha em harmonia na postura ereta e na locomoção bípede.

Segundo Philippe Souchard, o organismo assume a postura corporal respeitando hierarquicamente três leis:

  1. Garantir a sobrevivência/homeostasia 
  2. Garantir posturas confortáveis (sem dor)
  3. Garantir o menor custo energético

A coluna assume uma ligeira escoliose para nunca comprometer nem pressionar os órgãos nem os sistemas do organismo ao ponto de comprometer a sua sobrevivência. E como todas as articulações são interdependentes, as assimetrias corporais são então uma realidade natural do ser humano.

Em seguida serão abordados mais três exemplos de handicaps que tornam o corpo humano vulnerável, principalmente quando submetido a modalidades assimétricas:

1. O corpo humano é naturalmente assimétrico 

Um dos fatores que contribui para as assimetrias posturais é a distribuição heterogénica dos diferentes órgãos (e respetivas massas) nos diferentes quadrantes do tronco. O fígado, como exemplo é um órgão de grande dimensão que exerce mais carga sobre o lado direito do corpo, quando comparado com o estômago e baço do lado esquerdo (órgãos de menores dimensões). Tendo em conta as leis de Newton, a sobrecarga sobre as estruturas anatómicas é assimétrica por natureza.

2. A articulação da anca (coxofemoral) humana é limitada 

A reduzida congruência da articulação coxofemoral é um exemplo de herança que demonstra resquícios dos antecessores primatas. Haveria muito mais concordância da mesma articulação, na posição de flexão, abdução e rotação externa do fémur, ou seja, na posição de quatro apoios no solo. Agora imaginem na posição de guarda, executando os deslocamentos, o afundo e a flecha.

3. As hérnias intervertebrais são uma consequência natural de uma estrutura naturalmente assimétrica. 

A coluna vertebral apresenta normalmente ligeira escoliose no plano frontal, tendo em conta as diferenças na distribuição da carga na posição bípede. O que contribui para o desenvolvimento de hérnias. As hérnias agravam com as constantes posturas assimétricas durante a guarda e o afundo da Esgrima.

 

Minimizar riscos

Consegue-se então compreender o quão difícil é para o organismo manter-se na posição bípede, simetricamente alinhado e equilibrado. Posto isto, e perante um corpo naturalmente assimétrico exposto a estímulos assimétricos torna-se imperativo o envolvimento de equipas multidisciplinares (fisiologistas, médicos, treinadores, osteopatas, fisioterapeutas), tornando o acompanhamento mais personalizado de qualquer atleta da Esgrima, desde os momentos de avaliação postural e funcional até à prescrição de treino, de forma a minimizar os riscos de lesão e desenvolvimento da performance.

De forma a minimizar os potenciais riscos de uma modalidade assimétrica como a Esgrima, num organismo que por si já é assimétrico, recomendo seguir os seguintes passos:

  1. Avaliação postural e funcional no início da época e reavaliações periódicas.
  2. Utilizar estratégias corretivas quando se identificam padrões disfuncionais (serão abordadas numa próxima redação) 
  3. Orientar bem os treinos quando aplicamos as importantes resistências externas que influenciam as internas seguindo a ordem:
    1. Do mais analítico (menos articulações em carga) para o mais integrado
    2. De mais apoios no solo para menos
    3. De menos planos do movimento desafiados para mais
    4. De menos graus de liberdade de cada articulação para mais

De modo a preparar cada atleta com o menor risco possível de lesão e desenvolver-lhe a máxima performance.

Um abraço a todos e até uma próxima rubrica

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