Nota prévia: Esta rubrica pretende contar histórias e estórias da esgrima e dos esgrimistas. No entanto, considero que antes de mais, devemos meditar sobre aquilo que representa esta modalidade que escolhemos e que fará para sempre parte de nós. Sim, porque os esgrimistas, os verdadeiros esgrimistas, não conseguem afastar-se da esgrima. Adaptando um chavão bem conhecido, o esgrimista pode afastar-se da esgrima, mas a esgrima nunca se afastará do esgrimista!

Texto de: Frederico Valarinho

Os portugueses orgulham-se, com toda a razão, de pertencer à nação com as mais antigas fronteiras da Europa. De facto, foi em 1297, com a assinatura do Tratado de Alcanizes, que as fronteiras entre Portugal e Espanha (então constituída por vários reinos) ficaram definidas, fazendo do nosso país o mais antigo Estado-Nação do Velho Continente. Para que tal se tornasse possível foram necessárias décadas de reconquista e mais de um século e meio de luta pela independência relativamente a Castela. Tudo isto não teria sido conseguido sem as espadas e a bravura de milhares de portugueses, alguns ainda hoje recordados mas a maior parte caídos no esquecimento, que ousaram sonhar com a construção de um novo país no extremo mais ocidental da Europa.

A espada foi, de facto, o instrumento da criação de Portugal. Era, é verdade, uma espada bem diferente daquela que hoje usamos na esgrima desportiva. Uma espada pesada, cortante e perfurante, capaz de tirar a vida aos inimigos. Mas era uma espada, símbolo de coragem e de honra, brandida por quantos sabiam que, em combate, fazia a diferença entre morrer e matar. Era, também, o instrumento com que os melhores dos melhores eram armados cavaleiros e, com a sua forma de cruz, transformava-se num altar em que se invocava a proteção divina.

É verdade que, olhando para as espadas do século XII ou XIII, pouco vemos em comum com as armas da esgrima moderna. As lâminas não eram virtualmente inquebráveis, as pontas não eram protegidas para evitar ferimentos, os guarda-mão não eram semiesféricos como hoje os conhecemos, não estavam dotadas de eletrificações para assinalar os toques nos opositores. No entanto, os esgrimistas de hoje devem rever-se nos cavaleiros de antanho, batendo-se com honra e galhardia pelo melhor resultado, lutando até à exaustão mesmo em situações de óbvia inferioridade – porque não há vitórias nem derrotas garantidas sem que o combate esteja terminado.

Mais que uma arte bélica

Todos aqueles que, de entre nós, se afirmam como esgrimistas perante pessoas que não conhecem a nossa modalidade, enfrentaram já olhares de desdém e comentários depreciativos que afirmam que a esgrima já não tem razão de ser numa época em que até as armas de fogo são cada vez mais obsoletas. Sendo certo que as armas brancas são já virtualmente inúteis no campo de batalha e que mesmo os duelos, últimos terrenos onde a espada (ou o sabre… ou o florete…) serviu para defender a vida e a honra foram ilegalizados há cerca de um século, o comum dos mortais considerará inútil aprender a usar um ferro.

Mas, na realidade, a esgrima é, foi e será sempre muito mais do que uma arte bélica. Acima de tudo, a esgrima deve ser encarada como uma escola de virtudes, em que aprendemos durante uma vida inteira a sermos melhores homens e mulheres. A espada (ou o sabre… ou o florete…) já não é um instrumento para matar ou ferir, mas continua a ser um prolongamento de nós próprios, um elo que nos liga ao que de mais puro e honroso temos na alma. Com um ferro na mão e tendo pela frente outro esgrimista, é-nos exigida uma entrega total – física, intelectual e moral. Nesse momento não nos batemos somente pelo triunfo, mas pela perfeição da prática e da execução de cada ação e, acima de tudo, pelo respeito pelos valores e princípios que presidem à modalidade.

Para o esgrimista, a esgrima vai muito além dos assaltos em que procura tocar sem ser tocado. Na nossa vida quotidiana devemos aplicar aquilo que, desde o primeiro treino, o mestre nos incutiu: perseverança, resiliência, coragem e honra. Sabemos reagir adequadamente aos estímulos mais inesperados. Aprendemos que uma derrota não significa o fim de nada, mas o princípio de novos desafios e que, da mesma forma, nenhuma vitória é eterna. Entendemos que, muitas vezes, um passo atrás marca o início de um avanço imparável. E, acima de tudo, estamos conscientes de que do outro lado não está um inimigo nem um adversário, mas um opositor que nos deve merecer o máximo respeito do primeiro ao último instante.

Esta foi a esgrima que me ensinaram esgrimistas como Herculano Pimentel, Orlando Azinhais, José Amado Fernandes, Cristina Câmara e tantos outros que já não estão entre nós mas que, do assento etéreo onde subiram, como escreveu o Poeta, continuam a olhar-nos e a exigir que, como eles, honremos a esgrima, nos bons e nos maus momentos!

cropped-Estatua_de_Afonso_Henriques-1-Copia